Os governos ricos deixam os países do Leste entregues à própria
sorte e abrem a porta para um recrudescimento da crise. Criadas no auge
do neoliberalismo, as instituições europeias parecem hostis a outras
políticas e podem converter o continente num obstáculo à busca de saídas
globais
A paralisia da União Europeia (UE) pode ter aberto, no início do mês, um novo veio para o alastramento da crise mundial. Em 1º de Março, os chefes de governo dos 27 países-membros reuniram-se em Bruxelas, num encontro convocado às pressas, para examinar os dramas provocados pela crise económica no centro e leste do continente — a área conhecida como CEE em inglês.
A exemplo da Letónia, Lituânia, Estónia, Hungria e Roménia podem viver em breve insolvência financeira, dramas sociais e turbulências políticas. A Ucrânia — fora da UE mas em sua área de influência — está à beira de uma explosão. Mesmo em países com situação menos delicada (Polónia e República Checa, por exemplo), o alto endividamento da população em moeda estrangeira pode se converter rapidamente numa vulnerabilidade grave, caso a região derrape. Qualquer um destes acidentes contaminaria o conjunto Europa, tornando ainda mais profunda a crise, e mais intrincada a busca de uma saída.
Não faltaram, na reunião de 1º/3, alternativas concretas para enfrentar os problemas. A partir de um estudo sobre a fuga de capitais e o fechamento das linhas de crédito, desencadeados pelos bancos ocidentais, os governos da Hungria e Polónia sugeriram um “Programa Europeu de Estabilização e Integração”. Calculam que com 180 biliões de euros, emprestados pelos governos mais fortes, seria possível restabelecer a tranquilidade nos dez países que faziam parte do bloco soviético e hoje estão integrado à União Europeia. Está longe de ser um exagero. Os números são inferiores às estimativas do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento [que fala em 240 a 280 biliões de euros, para recapitalizar a região]. E o valor solicitado equivale a apenas 5,6% do total de garantias já oferecidas pelos países ricos da UE contra a quebra de suas próprias instituições financeiras.
A reacção, porém foi fria. A chanceler alemã, Ângela Merkel, comandou a oposição à proposta. Nos corredores, alegou-se que salvar os países do Leste seria incentivar a suposta irresponsabilidade fiscal de seus dirigentes. Mas evitaram-se menções ao comportamento dos bancos ocidentais, que criaram uma bolha de liquidez e consumo (e lucraram com ela…). Houve troca de farpas. O checo Mirek Topolanek (cujo país exerce a presidência rotativa da UE) alfinetou o francês Nicolas Sarkozy. Taxou como “proteccionista” sua proposta de salvar os fabricantes de automóveis franceses, desde que produzam no próprio país (e não na República Checa, para onde transferiram parte das linhas de montagem), O documento final é pífio. Afirma retoricamente que “nenhum país europeu cairá fora do barco”, sem nada propor de real. Repete um cliché já desmentido pelas evidências: sustenta que as dificuldades actuais serão resolvidas com “a livre circulação de mercadorias, pessoas e capitais” no interior do bloco
A hesitação da Europa custará provavelmente caro, em vários terrenos. Nada indica que a CEE possa sair da crise espontaneamente. A hemorragia de capitais prossegue. Até mesmo a solução tradicionalmente oferecida aos países atingidos – recorrer ao FMI e a seus remédios amargos – está se revelando inviável. Em Fevereiro, o Fundo foi incapaz de chegar a um acordo com o governo ucraniano, conhecido por seu apoio incondicional ao Ocidente. As condições exigidas levariam o presidente Viktor Yushchenko a uma derrota quase nas certa eleições de Janeiro de 2010, e ele preferiu salvar a própria pele.
Os riscos político também são graves. Além dos governos da região, estão em jogo a frágil estabilidade de uma área geopolítica marcada por conflitos e, em última instância, o próprio equilíbrio de forças que sustenta a União Europeia. A crise já derrubou o gabinete na Letónia (em 20/2). Está engendrando protestos crescentes na Ucrânia (há cerco da capital por agricultores, e 57% dos eleitores defendem a renúncia do presidente), Hungria (onde o governo de minoria, liderado pelo Partido Socialista, está por um fio), Lituânia e Roménia. Como toda a CEE tem sistemas políticos e quadros partidários frágeis, não é preciso muito para que outros dirigentes balancem ou sucumbam.
Mas a frustração das sociedades não se volta apenas contra seus governantes: Há também, no ar, o sentimento de que a região é vítima de uma grande injustiça – cujos responsáveis seriam o Ocidente, a Europa rica e o FMI. Em todos os países, a transição ao capitalismo foi marcada por grande sofrimento e desconforto. Houve aumento de desemprego e exclusão social; quebra de sistemas públicos e relativamente eficientes de Previdência, Saúde e Educação; aumento generalizado da desigualdade. Os sacrifícios eram justificados como o preço a pagar pela prosperidade e pela democracia ocidental.
A última década foi, de fato, marcada pela melhora das condições de vida e, em especial, pela introdução de hábitos de consumo semelhantes aos da Europa rica. Ainda assim, a desigualdade nunca foi enfrentada a sério. Um estudo divulgado em Fevereiro pelo Eurostat, o centro de estatísticas da União Europeia, revelou que o PIB por habitante da região de Londres é treze vezes maior que o do Nordeste da Roménia. Todas as vinte regiões mais pobres estão situadas em países do Leste. Os sinais de que a festa fugaz de consumo dos anos recentes está chegando ao fim geram um clima de graves tensões. Atitudes como a dos chefes de governo ocidentais, na reunião de 1º de Março, certamente as tornam mais agudas.
O risco é que, à falta de projectos políticos claros, a revolta converta-se em ressentimentos xenofóbicos contra os diferentes, ou em novos conflitos envolvendo nacionalidades, etnias ou religiões. Há vinte anos, o esfacelamento da zona de influência soviética desencadeou uma sucessão de guerras civis sangrentas na antiga Jugoslávia. No cenário actual, um dos efeitos temidos é o ressurgimento do que acima citamos.
Os riscos a que a UE se expõe são tão vastos, e tão temíveis, que uma questão maior, inevitável, se impõe: por que os governantes europeus agem de forma aparentemente tão apática ou obtusa? O economista Ignacy Sachs, cujos estudos sobre desenvolvimento e sustentabilidade têm repercussão e reconhecimento internacionais, tem uma hipótese. Ele julga que a União Europeia está engessada por sua própria armação institucional Construída em grande medida nos anos de apogeu do neoliberalismo, esta estrutura teria gravados em si os preconceitos da época, e tenderia a multiplicá-los incessantemente.
Ignacy aponta exemplos. Ao contrário do Federal Reserve norte-americano, que tem como objectivos a busca do desenvolvimento, a geração de empregos e o controle da inflação, o Banco Central Europeu persegue apenas esta última meta – a que mais interessa aos grandes investidores. O mesmo viés prevalece na infinidade de tratados entre os Estados-membros, políticas comuns e directivas que determinam as políticas do bloco. Eles “liberaram” a actividade das grandes empresas e instituições financeiras dos controles públicos – porque apostaram na “auto-regulação dos mercados”. Estimularam ou impuseram privatizações, reduzindo o papel dos serviços públicos. Promoveram a competição como motor da produção de riquezas economia, desprezando a colaboração.
Tais tendências não são, é claro, exclusivas do Velho Continente: elas se espalharam pelo mundo, nas três últimas décadas. A particularidade europeia é que estas políticas foram instituídas – e tornaram-se obrigatórias nos Estados-membros – sem que se criassem, ao mesmo tempo, instrumentos democráticos capazes de questioná-las ou alterá-las. Embora eleito por voto directo, o Parlamento Europeu está destituído de dois poderes fundamentais: o de legislar por iniciativa própria (ele apenas referenda propostas) e o de controlar o Executivo. Já a Comissão Europeia, que cumpre o papel de Executivo do bloco, não é escolhida nem em eleições, nem pelo Parlamento – e, sim, composta por um representante de cada Estado-membro.
CCP-CBT
A paralisia da União Europeia (UE) pode ter aberto, no início do mês, um novo veio para o alastramento da crise mundial. Em 1º de Março, os chefes de governo dos 27 países-membros reuniram-se em Bruxelas, num encontro convocado às pressas, para examinar os dramas provocados pela crise económica no centro e leste do continente — a área conhecida como CEE em inglês.
A exemplo da Letónia, Lituânia, Estónia, Hungria e Roménia podem viver em breve insolvência financeira, dramas sociais e turbulências políticas. A Ucrânia — fora da UE mas em sua área de influência — está à beira de uma explosão. Mesmo em países com situação menos delicada (Polónia e República Checa, por exemplo), o alto endividamento da população em moeda estrangeira pode se converter rapidamente numa vulnerabilidade grave, caso a região derrape. Qualquer um destes acidentes contaminaria o conjunto Europa, tornando ainda mais profunda a crise, e mais intrincada a busca de uma saída.
Não faltaram, na reunião de 1º/3, alternativas concretas para enfrentar os problemas. A partir de um estudo sobre a fuga de capitais e o fechamento das linhas de crédito, desencadeados pelos bancos ocidentais, os governos da Hungria e Polónia sugeriram um “Programa Europeu de Estabilização e Integração”. Calculam que com 180 biliões de euros, emprestados pelos governos mais fortes, seria possível restabelecer a tranquilidade nos dez países que faziam parte do bloco soviético e hoje estão integrado à União Europeia. Está longe de ser um exagero. Os números são inferiores às estimativas do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento [que fala em 240 a 280 biliões de euros, para recapitalizar a região]. E o valor solicitado equivale a apenas 5,6% do total de garantias já oferecidas pelos países ricos da UE contra a quebra de suas próprias instituições financeiras.
A reacção, porém foi fria. A chanceler alemã, Ângela Merkel, comandou a oposição à proposta. Nos corredores, alegou-se que salvar os países do Leste seria incentivar a suposta irresponsabilidade fiscal de seus dirigentes. Mas evitaram-se menções ao comportamento dos bancos ocidentais, que criaram uma bolha de liquidez e consumo (e lucraram com ela…). Houve troca de farpas. O checo Mirek Topolanek (cujo país exerce a presidência rotativa da UE) alfinetou o francês Nicolas Sarkozy. Taxou como “proteccionista” sua proposta de salvar os fabricantes de automóveis franceses, desde que produzam no próprio país (e não na República Checa, para onde transferiram parte das linhas de montagem), O documento final é pífio. Afirma retoricamente que “nenhum país europeu cairá fora do barco”, sem nada propor de real. Repete um cliché já desmentido pelas evidências: sustenta que as dificuldades actuais serão resolvidas com “a livre circulação de mercadorias, pessoas e capitais” no interior do bloco
A hesitação da Europa custará provavelmente caro, em vários terrenos. Nada indica que a CEE possa sair da crise espontaneamente. A hemorragia de capitais prossegue. Até mesmo a solução tradicionalmente oferecida aos países atingidos – recorrer ao FMI e a seus remédios amargos – está se revelando inviável. Em Fevereiro, o Fundo foi incapaz de chegar a um acordo com o governo ucraniano, conhecido por seu apoio incondicional ao Ocidente. As condições exigidas levariam o presidente Viktor Yushchenko a uma derrota quase nas certa eleições de Janeiro de 2010, e ele preferiu salvar a própria pele.
Há vinte anos, o esfacelamento da zona de influência soviética desencadeou uma sucessão de guerras civis sangrentas na antiga Jugoslávia. No cenário actual, um dos efeitos temidos é o ressurgimento do extremismo e do poder enorme que o grande capital está a ganhar...
Os riscos de são enormes. Bancos europeus-ocidentais dominaram, a partir da queda dos regimes comunistas, o setor financeiro na CEE. Obtiveram ganhos fartos, mas assumiram enormes riscos: o valor total de seus empréstimos ao leste europeu sobe a 1,5 trilião de dólares – ou todo o PIB do Brasil. Alguns países estão ainda mais comprometidos. Segundo um interessante publicado pelo Financial Times a exposição dos bancos da Áustria equivale a 55,6% do PIB de seu país. Os percentuais também são explosivos na Bélgica (23%) e Suécia (21,4%); e bastante elevados na Holanda (10,9%), Itália (7,3%), França (4,8%) e Alemanha (4,6%). Uma onda de inadimplência poderia se transformar num factor de desestabilização comparável ao da quebra do mercado de subprimes norte-americano.Os riscos político também são graves. Além dos governos da região, estão em jogo a frágil estabilidade de uma área geopolítica marcada por conflitos e, em última instância, o próprio equilíbrio de forças que sustenta a União Europeia. A crise já derrubou o gabinete na Letónia (em 20/2). Está engendrando protestos crescentes na Ucrânia (há cerco da capital por agricultores, e 57% dos eleitores defendem a renúncia do presidente), Hungria (onde o governo de minoria, liderado pelo Partido Socialista, está por um fio), Lituânia e Roménia. Como toda a CEE tem sistemas políticos e quadros partidários frágeis, não é preciso muito para que outros dirigentes balancem ou sucumbam.
Mas a frustração das sociedades não se volta apenas contra seus governantes: Há também, no ar, o sentimento de que a região é vítima de uma grande injustiça – cujos responsáveis seriam o Ocidente, a Europa rica e o FMI. Em todos os países, a transição ao capitalismo foi marcada por grande sofrimento e desconforto. Houve aumento de desemprego e exclusão social; quebra de sistemas públicos e relativamente eficientes de Previdência, Saúde e Educação; aumento generalizado da desigualdade. Os sacrifícios eram justificados como o preço a pagar pela prosperidade e pela democracia ocidental.
A última década foi, de fato, marcada pela melhora das condições de vida e, em especial, pela introdução de hábitos de consumo semelhantes aos da Europa rica. Ainda assim, a desigualdade nunca foi enfrentada a sério. Um estudo divulgado em Fevereiro pelo Eurostat, o centro de estatísticas da União Europeia, revelou que o PIB por habitante da região de Londres é treze vezes maior que o do Nordeste da Roménia. Todas as vinte regiões mais pobres estão situadas em países do Leste. Os sinais de que a festa fugaz de consumo dos anos recentes está chegando ao fim geram um clima de graves tensões. Atitudes como a dos chefes de governo ocidentais, na reunião de 1º de Março, certamente as tornam mais agudas.
O risco é que, à falta de projectos políticos claros, a revolta converta-se em ressentimentos xenofóbicos contra os diferentes, ou em novos conflitos envolvendo nacionalidades, etnias ou religiões. Há vinte anos, o esfacelamento da zona de influência soviética desencadeou uma sucessão de guerras civis sangrentas na antiga Jugoslávia. No cenário actual, um dos efeitos temidos é o ressurgimento do que acima citamos.
Uma deterioração do cenário económico, social
e política na área da CEE provocaria, por fim, estremecimentos entre os
próprios membros ocidentais da União Europeia. Países como Irlanda e
Grécia estão em situação próxima à das economias centrais e orientais.
Acumulam deficits externos expressivos, já mergulharam em recessão grave
e estão sujeitos a crises cambiais abruptas. Num mundo de mercados
financeiros interligados, suas economias serão vistas como “bola da
vez”, caso um terremoto a leste desencadeie um movimento de corrida dos
capitais em relação a praças tidas como mais seguras.
É como se as políticas neoliberais tivessem sido blindadas para sempre, restando aos cidadãos europeus, no terreno institucional, o exercício pouco prazeroso de escolher governantes e parlamentares que executarão invariavelmente o mesmo projecto…
O agravante é que o euro, nestes casos, funciona como factor de estabilidade, – mas também… como prisão. Os governos irlandês e belga, assim como todos os outros que adoptam a moeda comum do continente, estão impedidos de adoptar políticas que poderiam amenizar a crise. Não podem, por razões óbvias, desvalorizar a moeda, nem emiti-la segundo sua vontade. Por estarem submetidos às directrizes do Banco Central Europeu, também perderam o poder de estimular sua economia por meio de medidas que produzem deficits fiscais. Em tese, a União Europeia poderia apoiá-los. Mas como fazê-lo, depois de ter negado amparo a outros membros? E como Irlanda e Grécia reagirão, se forem abandonadas à própria sorte? Lembre-se que, ao rejeitar o Tratado Constitucional europeu, em Junho de 2008, o eleitorado irlandês emitiu um primeiro sinal de descontentamento em relação ao bloco.Os riscos a que a UE se expõe são tão vastos, e tão temíveis, que uma questão maior, inevitável, se impõe: por que os governantes europeus agem de forma aparentemente tão apática ou obtusa? O economista Ignacy Sachs, cujos estudos sobre desenvolvimento e sustentabilidade têm repercussão e reconhecimento internacionais, tem uma hipótese. Ele julga que a União Europeia está engessada por sua própria armação institucional Construída em grande medida nos anos de apogeu do neoliberalismo, esta estrutura teria gravados em si os preconceitos da época, e tenderia a multiplicá-los incessantemente.
Ignacy aponta exemplos. Ao contrário do Federal Reserve norte-americano, que tem como objectivos a busca do desenvolvimento, a geração de empregos e o controle da inflação, o Banco Central Europeu persegue apenas esta última meta – a que mais interessa aos grandes investidores. O mesmo viés prevalece na infinidade de tratados entre os Estados-membros, políticas comuns e directivas que determinam as políticas do bloco. Eles “liberaram” a actividade das grandes empresas e instituições financeiras dos controles públicos – porque apostaram na “auto-regulação dos mercados”. Estimularam ou impuseram privatizações, reduzindo o papel dos serviços públicos. Promoveram a competição como motor da produção de riquezas economia, desprezando a colaboração.
Tais tendências não são, é claro, exclusivas do Velho Continente: elas se espalharam pelo mundo, nas três últimas décadas. A particularidade europeia é que estas políticas foram instituídas – e tornaram-se obrigatórias nos Estados-membros – sem que se criassem, ao mesmo tempo, instrumentos democráticos capazes de questioná-las ou alterá-las. Embora eleito por voto directo, o Parlamento Europeu está destituído de dois poderes fundamentais: o de legislar por iniciativa própria (ele apenas referenda propostas) e o de controlar o Executivo. Já a Comissão Europeia, que cumpre o papel de Executivo do bloco, não é escolhida nem em eleições, nem pelo Parlamento – e, sim, composta por um representante de cada Estado-membro.
Saltar da ideia de anti-Europa para a de Outra Europa pode ser um desafio tão duro quanto apaixonante. Os movimentos europeus cruzarão a ponte? Saberemos a partir das próximas semanas
O próprio orçamento da União Europeia é
irrisório. São cerca de 120 biliões de euros-ano – seis vezes menor que o
da França ou Reino Unido –, o que reduz ainda mais a capacidade de acção
estatal para corrigir desigualdades, controlar os mercados ou exercer o
planejamento. Os governos e legislativos nacionais conservam, no
interior de suas fronteiras, boa parte do poder. Mas não podem
contrariar os tratados, políticas comuns e directivas europeias; nem têm
canais para propor sua alteração. Nos EUA, Barack Obama pode propor,
contra a crise, um enorme programa de investimentos públicos. Ainda que
tivesse a mesma vontade política, nenhum governante europeu
poderia fazer o mesmo. Esta realidade quase - kafkiana conduz, é claro, à
inércia e ao esvaziamento da democracia. É como se as políticas
neoliberais tivessem sido blindadas para sempre, restando aos cidadãos
europeus, no terreno institucional, o exercício pouco prazeroso de
escolher os governantes e parlamentares que executarão invariavelmente o
mesmo projecto…
A crise é uma enorme oportunidade para rasgar
esta camisa de força. Ela deixará clara o autismo de um sistema
político voltado para si mesmo, impermeável à pulsação da sociedade. Dos
governos europeus, todos nascidos num ambiente de impotência e
conformismo, pouco se pode esperar. Dos movimentos sociais, sim. Em anos
recentes, a Europa foi palco de mobilizações populares muito
significativas – como as marchas gigantescas que denunciaram a guerra do
Iraque já em 2003, e ajudaram a isolar o governo Bush. Em quase todos
países a sociedade civil é articulada e activa. Para o período entre 28
de marco e 2 de Fevereiro, quando o G20 se reunirá em Londres,
esperam-se grandes manifestações, não apenas na Inglaterra.
Provavelmente, será preciso passar do
protesto à alternativa – o que requer alguns passos corajosos. Ao longo
de décadas, a construção da Europa foi vista pelas esquerdas como um
tabu, um processo que necessariamente reforçaria o capitalismo, e cujo
sentido era impossível alterar. Esta atitude de desistência – num
cenário caracterizado por intensa actividade das forças sociais e
políticas partidárias do fundamentalismo de mercado – agravou, é claro,
as piores características da UE.
O cenário actual convida a superar esta ausência. Saltar da ideia de anti-Europa para a de Outra
Europa pode ser um desafio tão duro quanto apaixonante. Significaria
imaginar políticas capazes de inverter os rumos do bloco econômico mais
rico do planeta. Permitiria construir políticas públicas a partir de
atitudes muito positivas já cultivadas por uma parte relevante da
opinião pública europeia – por exemplo, a cultura de paz, o consumo
responsável, o comércio justo, o apoio à agricultura orgânica e uma
urbanização menos árida. Convidaria a pensar a universalização de
conquistas sociais das quais o continente é berço – como o
salário-desemprego, a renda cidadã, a redução da jornada de trabalho, a
Saúde e Educação públicas. Abriria espaço para reexaminar o papel
internacional do euro e propor um sistema monetário e financeiro voltado
para a redução das desigualdades. Instigaria a inventar novas formas de
democracia, inclusive as que vêem o espaço público com algo muito mais
vasto que os Estados. Provocaria a busca de novos papéis para as forças
armadas e a própria OTAN.
Os movimentos europeus cruzarão a ponte? Saberemos a partir das próximas semanas.CCP-CBT
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